Márcia Lage
50emais
Eram 6.45 da manhã e toda a pousada acordou com a gritaria de um hóspede de outro hotel. Ele estava nervoso porque duas turistas que iriam fazer um passeio compartilhado com ele ainda não estavam a postos.
O motorista da van desceu para chamá-las e deixou o grupo no conforto do ar condicionado. Foi o mesmo que enjaular uma fera. O homem vociferava no mais alto e mais indecente palavreado que se pode esperar de alguém com mais de 60 anos.
A primeira hóspede da pousada surgiu educada, pedindo desculpas pelo atraso. A companheira de quarto tinha tido uma indisposição e precisou ir ao banheiro, mas já estava chegando.
O sujeito desceu da van jogando capoeira com palavrões. Repetia, aos berros, que havia pago por um passeio que sairia às 6.40, e que não aceitava ficar ali nem um segundo mais.
– Sou claustrofóbico, tá me entendendo?
Acordei às seis da manhã para cumprir o horário, não tolero gente sem compromisso. Essas duas que se arranjem. Vamos embora – ordenou ao motorista.
Esse pediu a ele um pouco mais de paciência, ainda não eram sete horas, a senhora havia tido uma dor de barriga, podia acontecer com qualquer um, peço ao senhor que se acalme.
– Acalmar é a PQP, isso é uma falta de profissionalismo, ela que vá ao médico se está doente. Não pode é empatar o passeio de todo mundo – vociferou com sangue nos olhos e fogo nas ventas.
– O senhor nunca teve uma disenteria? Retrucou a turista de idade que aguardava a amiga se despachar. Todo mundo passa por isso um dia, o senhor que vá a um psiquiatra para dar jeito nesse mau humor!
O homem não respeitava ninguém. Mandou que ela tomasse naquele lugar, como se estivesse num estádio de futebol.
O motorista interveio: meça as suas palavras, senhor, olha a compostura! Por pouco não levou um murro na cara.
Nisso chegou a outra idosa que havia atrasado a viagem, vexada pelo inconveniente.
O homem repetiu o xingamento dado à outra, ao que ela respondeu, docemente: o senhor é que vá! Demonstra ter problemas nessa área, já que não fala outra coisa. Por que não toma um litro de calmante no café da manhã para controlar esse comichão? Tá dando bandeira com esse chilique por causa de 15 minutos de atraso.
O homem ficou roxo de ódio e repetiu entre cusparadas o xingamento grosseiro. Levou o troco no mesmo tom: vá o senhor, que deve ser um veado enrustido pra só pensar nisso. Eu estou pelas orelhas com machistas grosseiros, truculentos, intolerantes e arrogantes que brotam feito cogumelo em estrume nesse país de tantos ignorantes.
Um casal que estava ao lado aplaudiu. Foi mandado para o mesmo lugar que o mala achava que todos deveriam ir, inclusive o motorista, a quem ele já havia humilhado bastante.
O restante dos passageiros abaixava a cabeça, entre envergonhados e coniventes.
Sem perder a compostura, o motorista anunciou que iria devolver o troglodita ao hotel e ligar para o dono da empresa de turismo, para decidir o que fazer com os demais passageiros. Ele que não iria dirigir 500km ida e volta com uma pessoa tão descontrolada à bordo.
– Então me mandem outro carro ou devolvam o meu dinheiro – berrava o ensandecido. Não saí de Cuiabá pra passar o dia preso numa van.
No hotel, que nem era de luxo para o cara se achar tanto, a van se esvaziou. Atrás do escandaloso desceram sua esposa, que tentara ficar invisível durante o trajeto; uma outra mulher de vestido colado azul, que havia feito menção de protestar com a que brigara com o brutamontes, mas teve juízo; e um casalzinho jovem que estava no fundo do carro.
O rapaz fingia que dormia, alheio ao bafafá. A namorada desceu pedindo desculpas a todos. Não tem do que se desculpar, disseram. Ele é meu pai – esclareceu a jovem, morta de vergonha. Sinto muito por você, disse a senhora. Não deve ser fácil ter um pai assim!
Da família sobrou apenas um cunhado do cara, na esperança de seguir viagem com os demais. Tentavam escapar do calor que arrebentava os termômetros em Cuiabá, mas o chato estragava qualquer programa com sua falta de educação.
Tá explicado – disse a velhinha. O cérebro do cara foi cozido por aquele mormaço de Cuiabá e ele está ficando demente.
Maluco ele já é, disse o cunhado. É igual cerrado seco. Pega fogo com qualquer fagulha. Calou-se quando sua mulher retornou do hotel e pediu que ele descesse. O atazanado queria reunir todo o clã em torno do seu destempero e não toleraria dissidência.
Já era quase oito horas, tarde demais para seguir com o passeio, o mais esperado de todos: os cânions do rio São Francisco, formados com a construção da hidroelétrica do Xingó, na divisa de Sergipe com Alagoas.
Os quatro passageiros restantes concordaram em adiar o tour para o dia seguinte, mas pediram que a empresa não levasse o ignorante e sua família.
Ninguém estava ali para ouvir desaforos desse tipo de gente que leva a vida a pulso, como se diz em Sergipe.
E como vingança é um prato que se come frio, o motorista humilhado enviou mensagens a todas as agências de turismo de Aracaju, cancelando o boca suja.
Ele que alugasse um carro e fosse sozinho com sua família subjugada para os pontos turísticos do estado. O brutamontes não era habilitado para viver em sociedade. Principalmente – ponderou – não é digno de mergulhar nas sagradas águas do Velho Chico.
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