Márcia Lage
50emais
O vento me obrigou a fechar a janela, para acalmar as cortinas. Frascos de colirio, de umectante para as narinas, creme para mãos e vagina, copo com água – toda a parafernália que a secura do ar me havia obrigado a ter sobre a mesinha de cabeceira – voou para o chão, varrida pelos panos endoidecidos.
O mais doido de tudo é que lá fora fazia 30 graus, com um sol de rachar. A cidade, espremida num vale obstruído por morros, encanava as rajadas e as fazia sibilar por entre as frestas. A cúpula azul que cobria aquele emaranhado de telhados, e cinco ou seis antipáticos arranhas-céu, começou a se acizentar nas bordas, pela poeira de asfalto, que a ventania jogava para o alto.
Ciente de que o fim do mundo está próximo e que a quadratura Netuno/Plutão/Mercúrio e Marte sobre o céu de agosto é para meter medo, consultei nas minhas mensagens se a Defesa Civil havia emitido algum alerta. Sim.
Ela havia dito, na quinta, 21, que a umidade do ar estaria abaixo de 30%, que todos deviam tomar muita água e evitar exercícios físicos.
De resguardo pela cirurgia de catarata no segundo olho, meu único exercício nos próximos 30 dias será pingar colirio a cada quatro horas. E era por isso que eu estava deitada, com a janela aberta para refrescar o quarto, quando as cortinas começaram a destruir tudo, como se quisessem se desprender dos trilhos e fugir para local seguro.
O vento, também, estava anunciado na mensagem de sexta-feira, 22, que alertava para rajadas muito fortes até a manhã de segunda-feira e que, numa emergência, devíamos ligar para o número 199.
Olhei o aplicativo do clima e ele afirmava que o vento, naquele momento, avançava sobre nós a 30km por hora. Nada que me fizesse voar pela janela. Mas, se saísse à rua, poderia comprometer a cirurgia com algum cisco imundo entrando pelo olho operado.
Sem ter o que fazer, e estando solidamente instalada em um dos arranha-céus fora do contexto da cidade centenária, de apenas 22 mil almas (podiam todas estarem bem guardadas em casas de alpendre e jardim), resolvi especular sobre o tempo nas outras cidades onde já morei. Para me inteirar, sem nada poder fazer, se os que deixei por lá estariam seguros.
Tenho 10 cidades favoritas no meu aplicativo de tempo. Todas elas estavam quentes, com ventos variando de 14 a 60 km por hora, umidade do ar muito abaixo dos 30%. Algumas chegavam a 13%, como Brasilia.
No Rio, apesar do mar, a umidade não passava de 30%. E quem havia saído para fazer stand-up padle teve que ser resgatado por bombeiros.
Descobri que estava melhor que todos os meus amigos naquela cidadezinha pacata onde fui me meter, por inquietações várias, entre elas a mudança climática em curso. Inclusive, ela era a única que poderia ter um tiquinho de chuva neste domingo e na segunda-feira, lavando as árvores empoeiradas e elevando a umidade do ar para, pelo menos, 60%.
Desisti de ter saudade do mar, uma vez que nem ele elevava a umidade à sua volta, e achei prudente ficar quietinha em casa, usando e abusando do meu aparato umectante.
Aqui, pelo menos, não há ondas para ressacas nem árvores podres que arrebentam a fiação. Mesmo se estourar a terceira guerra mundial, estou fora da rota dos mísseis supersônicos. Nem avião cai no meu telhado, porque não existe aeroporto nas imediações.
Conclusão: meu esconderijo é perfeito. Se o mundo acabar amanhã, serei testemunha ocular do Apocalipse. Espero estar com a vista recuperada para não perder nenhum detalhe.
Só uma coisa me entristece: sobreviver sozinha no mundo depois de amanhã, feito o dinossaurinho Horácio, personagem do Maurício de Souza, último exemplar de uma espécie extinta, sem amigos ou parceiros para recomeçar tudo outra vez. Com o desgosto de quem viu o mundo se acabar, sabendo as causas de isso ter acontecido, sem nada ter podido fazer para salvá-lo.
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