Ingo Ostrovsky, 50emais
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Cronista bom era o Paulo Mendes Campos. Num de seus escritos ele conta que numa recepção na Embaixada do Brasil em Londres uma “lady” ficou intrigada ao ouvir a tradução de Aquarela do Brasil, de Ary Barroso. “Como assim Brasil, brasileiro?” perguntava, espantada. “A França é francesa, a Inglaterra é inglesa…”
A dúvida ficou no ar até que um jovem diplomata explicou, para quem quisesse ouvir: “É que o Brasil, minha senhora, é o único país do mundo que é brasileiro…”
Fiquei maravilhado com essa afirmação. Não existe nenhum país no mundo que seja brasileiro, só o nosso Brasilzinho velho de guerra. Isso quer dizer muita coisa. Ser brasileiro faz do nosso um país único, especial, peculiar, com características só encontradas aqui, onde é grande o número de… brasileiros.
Onde há brasileiros é possível pensar em cobrar uma propina – ou comissionamento, segundo um brasileirismo recente – de um dólar para cada uma das 400 milhões de vacinas sendo negociadas por um ministério. Só o brasileiro seria capaz de inventar uma coisa chamada “sommelier de vacina”, aquele sistema de chegar no posto de saúde e perguntar “tem vacina para palmeirense? Não? Então volto outro dia!”
Quer coisa mais brasileira que um reverendo que deveria salvar almas se apresentar como negociante de imunizantes para a pandemia? Ou o general vice-presidente ir à África resolver os problemas de uma igreja que apoia e dá votos ao governo? Isso é bem brasileiro, gente. Eu aqui não me espantei.
Só o brasileiro tem a invencível vocação de deixar tudo para a última hora. Você sabe do que eu estou falando porque certamente já ficou em inúmeras filas que poderiam ser evitadas, mas aí não teria a menor graça, pelo menos para brasileiro. Repare só: em fila de americano ninguém conversa, os filantes estão sempre lendo livros ou jornais. Já minha última fila de brasileiro foi aquela festa, todo mundo reclamando do governo, falando dos problemas cardíacos, das dores na coluna, praguejando sobre a saúde da sogra e discutindo futebol…
Mais uma coisa que define brasileiro: quando não deixa para a última hora é porque conseguiu adiar o problema ou o que quer que seja, o chamado “deixa prá lá”. A procrastinação, que afetou meio mundo na atual tragédia sanitária, é coisa que todo brasileiro conhece bem, somos pioneiros e especialistas nessa prática, eu mesmo já deixei para amanhã o que me deu preguiça de fazer hoje.
Só o brasileiro é capaz de passar uma semana na porta de uma agência bancária para sacar um dinheiro que mal paga as refeições dos dias perdidos na fila. Quem, além de um brasileiro, seria capaz de conviver com nosso sistema tributário? Nossa autoridade taxou como sapato o que parecia ser um chinelo e fez a empresa de um amigo meu pagar uma multa. Três meses depois, os fiscais brasileiros mudaram de idéia, cobraram nova multa e taxaram o sapato de novo como chinelo. Só rindo!
Brasileiro é assim. Criativo, consciente, cordato, um amor de pessoa.
Existe uma coisa que diferencia o brasileiro de qualquer povo em qualquer planeta, uma coisa só nossa, única e exclusiva: o nosso jeitinho. Tem lei que não pega, regra que não precisa cumprir, existe sempre um jeitinho de não ser importunado por qualquer autoridade. Você pode virar à esquerda onde é proibido virar à esquerda; pode estacionar onde é proibido estacionar; não é obrigatório respeitar o sinal vermelho, pode-se dar um jeito de seguir em frente; e se aparecer um guarda, tem um jeitinho brasileiro de evitar atritos e discussões, a chamada “uma mão lava a outra”, prática que, desde a época do Brasil colonial, azeita as relações entre chefes e chefiados. Quem nunca?
Paulo Mendes Campos, escreveu que para o brasileiro, “os atos fundamentais da existência são: nascimento, reprodução, procrastinação e morte (esta última, se possível, também adiada)”.
Por isso, meu senhor e minha senhora, só por isso, desde 1939 o mineiro Ary nos faz sambar ao som de “Brasil, meu Brasil brasileiro… vou cantar-te nos meus versos…”
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